O maior inimigo do hedonista é o relógio. Parece existir uma lei secreta que teima em contrapor, de maneira inversamente proporcional, a velocidade que o tempo passa versus o grau de prazer que se desfruta. Logo, nada mais terrível que ser vítima da perda de tempo. No caso de Mendoza, leia-se “mapas”. Sem um mapa completo em mãos, trafegar pelas má sinalizadas estradas que levavam às incontáveis vinícolas do Cuyo argentino tornou-se um tormento. A cada beco sem saída, Cronos, sempre zombeteiro, regozijava-se com o infortúnio da equipe. Mas os nossos sorrisos já insistiam em permanecer, teimosos, pois não havia outro sentimento que pudesse competir com o prazer de ser observado - por onde quer que parássemos - pelos Andes.
A paisagem enganava. Por todos lados via-se a mesma coisa: vinícolas, vinícolas e vinícolas. Andes ao fundo, e muita poeira levantada pelos carros que trafegavam nas secas estradas mendocinas. Mas sempre há sinais. Sinais sutis, como um trote lento do gaúcho, ignorante ao relógio, e apenas focado no que constitui o seu momento: a charla e a prenda.
A imagem permaneceu na cabeça mesmo quando, finalmente, chegamos ao destino da vez: Cavas Wine Lodge. A propriedade do casal Martín Rigal e Cecilia Diaz Chuit impressiona já à distância, e a combinação da arquitetura do prédio com o tempo de estrada confunde os sentidos a ponto de imaginar que paramos no interior italiano ou grego.
Aproximando-se do lobby, vê-se com clareza, incrustado na parede, uma placa de bronze com o inconfundível símbolo Relais & Chateau.
Nos poucos passos que demos, não foi possível comentar a presença deste selo, nem o charme dos ventiladores de teto, pois ao abrir a porta, antes de mais nada, fomos recepcionados com uma taça de Cabernet Sauvignon da própria vinícola, colheita de 2007.
Uau. Mas ok, vamos manter a calma e explorar um pouco mais o local. O lobby, centralizado com gostosas chaises unificadas e adornadas por um lustre em forma de vinha, era delicadamente decorado com peças de arte encomendadas exclusivamente para o local. Incluindo uma simpática mimosa que não faria feio em uma Cow Parade.
Mais ao lado, via-se uma opção bastante aconchegante: um living com confortáveis sofás e uma lareira que seria a salvação dos hóspedes em épocas mais frias.
Mas a temperatura amena convidava para um dia à céu aberto, assim sentamos em uma das poucas mesas do pátio, respirando o ar andino que se misturava ao vinhedo recém plantado e aos aromas provocativos que emanavam da cozinha.
Se o tempo é o maior inimigo do hedonista, então nós somos o antagonismo do relógio. Porque, curiosamente, os ponteiros passaram a se arrastar aqui, como um presente divino ou qualquer outro elemento que faça sentido pra você. Fato é que começamos a salgar o paladar com pedaços frescos de variados cortes de pão com um azeite de oliva aromático e picante. Good God, as expectativas só aumentavam.
Meio ao delicado tilintar dos talheres de prata, somente interrompidos por conversas sussurradas e o meneio da folhagem que não resistia a suave brisa vinda da montanha, escutávamos aquele etéreo som de água fluindo. Curiosos, caminhamos até a fonte do ruído para descobrir a piscina do hotel, com uma dezena de sapos de bronze que cuspiam a água clorada para deleite dos hóspedes.
Virava-se a cabeça e via-se, ainda mais perto, os retorcidos galhos das videiras que lutavam para fazer crescer suas uvas. Novamente, os Andes. Até o charme de uma das cabanas do hotel. Como ficar longe disso? Como?
Ora, não ficamos. Fora da área do restaurante, próximo à piscina e às plantações, duas solitárias espreguiçadeiras de palha sorriram. Manhosos, perguntamos se era possível que o staff servisse a refeição lá mesmo, comeríamos de qualquer jeito, prato no colo, com as mãos, whatever. É óbvio que não nos deixariam assim. Mais sorridentes ainda, a solícita equipe deu-se o trabalho de montar algumas mesinhas, e com tanto mimo assim já era impossível disfarçar a satisfação com o momento.
O clima primaveril sempre pede tragos mais frescos, assim que puxamos da bem variada carta de vinhos o rosé Dolium Petit Reserva Malbec 2008, que a cada minuto de tratamento no gelo ganhava mais pontos conosco.
A rolha, já longe da garrafa, permitia que o vinho respirasse o ar fresco que tanto nos agradava nesta tarde e, assim, melhorasse de humor na mesma proporção que avançavam os nossos encantos.
Prova do cuidado com os detalhes, até o balde de gelo ganhou um repouso relais & chateau, dentro de um retorcido tronco.
A linda cor do Dolium praticamente implorava para uma foto com um belo cenário de fundo, e o momento era tão positivo que as únicas lágrimas admissíveis nesta tarde eram as do próprio vinho.
Claro que, num raro momento destas páginas, vamos dar total atenção também aos comes. O cardápio, alterado a cada três meses para se adaptar aos ingredientes mais ricos de cada estação do ano, atiçou a curiosidade gastronômica com seus vários nomes. Mas começamos com um prato de queijos argentinos e frutas da estação.
Para os principais optamos por ravioles de cordeiro com azeite de oliva e vegetais assados.
E carneiro grelhado com chutney de peras e maçãs acompanhado de batatas assadas com vinho do Porto. Deus existe.
Já que o dia era de homenagem ao movimento slow food, os doces foram obrigados a participar desta pequena comemoração. Primeiro, um chocolate negro em três texturas.
E duas releituras do Créeme Brûleé: uma com alecrim e lavanda, e a outra de laranja e canela, ambas acompanhadas por um shot de chá gelado.
Mas após quatro inesquecíveis e arrastadas horas, curtidas segundo por segundo, os pratos eram retirados, e a tristeza do último chorinho da garrafa de vinho ia se firmando.
Nos sobravam os devaneios, as hipóteses de levar uma vida longe da fúria urbana, da mesma maneira que o velho colheitador levava, pacificamente, em cima de sua bicicleta.
Dúvidas? Sem dúvida. Mas a certeza absoluta de que os $350 (R$180) utilizados para pagar a conta foram uma pechincha perto da prazer momento proporcionou. E, sim, um tanto piegas, mas a reconfortante certeza de que essa, diferente da colorida flor que desabrochava no seco solo mendocino, era apenas uma de tantas boas experiências que a vida há de nos reservar.
Cavas Wine Lodge
Costaflores s/n - Alto Agrelo M 5507
Lujan de Cuyo - Mendoza
(0261) 410 6927
www.cavaswinelodge.com
Mapa
Bom para: celebrar a vida
Ruim para: pessoas de mal com a vida, ué
Andes: eu te amo
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Cavas Wine Lodge: quando o relógio parou
terça-feira, 28 de setembro de 2010 - 11:58
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Geraldo Figueras
— Marcadores:
Argentina,
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Calmo
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13 comentários:
Oba, adorei o post.
Bom, acho que não preciso falar que compensa se perder um pouquinho pra chegar nesse lugar né?
Ontem mesmo confirmei minhas férias para julho do ano que vem, quero voltar em Mendoza e com certeza o Cavas Wine Lodge vai ser incluído na programação. (e com certeza um GPS)
Melissa, compensa mesmo! E GPS é lei para a próxima visita lá, mesmo que seja para ouvir repetidas vezes o "recalculando rota".
que show de lugar!!! Eu ainda não conheço o interior da Argentina e pretendo em breve corrigir este erro... Lindo post!! E vamos hoje abrir um bom malbec mendocino para comemorar o futuro Malbec World Wine Day (http://vinosdeargentina.blogspot.com/2010/09/malbec-world-wine-day.html) ! Abraço! Ah, o verdadeiro hedonista é aquele que nem tem relógio pra se preocupar... Afinal, já dizia o poeta, Alarm clocks kill dreams...
Tem que conhecer mesmo Marco. A idéia ainda é sair de carro pelo país inteiro, esticar até o Chile.
Dia del Malbec! Vou abrir uma garrafa agora mesmo!
WOWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWW!
Amigo, se eu não fosse uma pessoa educada, eu xingaria até morrer, por esse post!
Mas ao contrário, me faltam palavras (oi?), substantivas, substanciais, adjetivas, elogios, qualquer coisa que exprima o que achei, disso tudo que você mostrou e "narrou" aqui!
Geraldo: QUE MARAVILHA!!!
Não só o lugar, que até já conhecia, pelo blog da Alexandra Forbes, e de consultar o site do hotel, mas com sua descrição! PQP! (desculpe) não tem nada igual!
Nem o melhor dos public relations, nem agentes publicitários, agentes de turismo, enólogos, marketeiros, e ainda hostess, fariam pelo Cavas, o que você conseguiu: uma vontade louca! de conhecer o lugar!
Geraldo, estou impressionadíssima, inclusive com o seu português e estilo literário: seu texto está espetacular, sem brincadeira! Está tendo a capacidade de transportar-nos para o clima do lugar.
Com quem você aprendeu a escrever assim? Parabéns! A você e a seu prof.
E as fotos?! my God! Forgive me!
Você ficou um tempinho, de pernas pro ar, mas voltou arrasando!
Sério, Geraldo, vou divulgar esse seu post pra todos os amigos e pessoas amantes de viagem, do vinho, da boa mesa, do bem viver!
Olha, vou te dizer, com toda honestidade: É O MELHOR POST DO ANO, ATÉ AGORA! Ducá! (com todo o respeito)
Será que você vai me surpreender mais?
Epicuro deve estar rolando no túmulo, na tumba, se corroendo de inveja de você! PQP! Você é o rei do hedonismo! rsrsrs
E esse carneiro ao Porto, é uma ode ao prazer!
Quero escolher você pra presidente!
Tenho dito!
:D
Beijos, agradecidos de sua fã, orgulhosa!
Ah...além de você, e de sua sortuda namorada, tinha mais alguém nesse culto Carpe Diem?
Ligia,
Uma delícia ler teus rasgados elogios. Bom demais saber não só que apreciou tudo, mas que compreendeu. Acho que o fundamental é realmente passar a experiência do momento acima de tudo, pois é isso que todos vão atrás no final das contas.
Beijo!
Geraldo e Marco,
Vale muito a viagem pelo interior da Argentina. Eu fiz ano passado e já estou com tudo certo pro ano vem. Viajar de carro é tudo de bom, dá pra ir parando e curtindo, e o melhor é não ter tudo reservadinho, a espontaneidade é um dos melhores ingredientes em viagens longas...
Sem dúvida! Felicidade no dia que conseguirmos dois meses livres pra fazer Chile e Argentina de carro
adoro a forma 'jocosa' dos textos, a riqueza das imagens e a concisao dos paragrafos.
sinto mesmo nao ter mais tempo pra acompanhar todos os posts, mas o que leio, guardo na retina, na medida do possivel, os lugares e as delicias provadas!
favoritado! ;)
Menino, que delícia de viagem e cardápio. Fiquei com agua na boca. beijo
gisele
Eve, querida, obrigado pelos elogios! Espero que apareça aqui mais vezes :)
Gisele, que bom que gostou! Chegou a passar lá no Cavas?
Parabéns pelo post! Um dos mais bonitos que já li.
Indira, obrigado :)
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